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Eu e o motociclismo

Antonio CasteleiroQuando se aproxima uma viagem de moto, começo a ser tomado por uma ansiedade de liberdade, uma liberdade que somente duas rodas proporcionam. A moto recebe cuidados especiais: polimento do cromo, calibragem dos pneus, verificação do óleo e da bateria, conferência de toda a parte elétrica, cera na lataria, na carenagem e um produto para dar brilho aos pneus.

Para um motociclista, a moto é encarada como uma namorada, a quem deve ser destinado todo o cuidado. Uma namorada é aquela por quem se tem ciúmes, que não se trata mal e da qual não se aceita que falem mal. Poder-se-ia dizer que é como um casamento (quando se encontra a mulher da sua vida). Não se lamenta o dinheiro gasto em comprar alguns acessórios; quer vê-la bonita. Não se relaxa na manutenção, pois não se quer vê-la doente. Até mesmo uma simples volta não escapa dos carinhos de uma pequena limpeza.

Gosto de preparar a moto para um encontro ou passeio. É um ritual prazeroso do qual não se abre mão; afinal, em muitos casos, o motociclo é o reflexo do seu proprietário. Existem os mais conservadores, outros mais exóticos, alguns bem originais e aqueles que estilizam tanto a moto que parece mais um componente de um cenário de filme de terror ou ritual macabro. Mas é aí que deparamos novamente com o livre-arbítrio e a liberdade de expressão.

A vida é um quotidiano tomado por compromissos que se atropelam. Horários marcados, trabalho stressante, cada um lutando do jeito que pode para garantir o seu lugar ao sol, trânsito caótico, serviços de autocarros coletivos péssimos, em que o itinerário para chegar a casa parece o pagamento de uma penitência. Uma hora é um aposentado que fica sem a sua reforma, noutra é uma idosa que fica sem a sua correntinha ou o seu anel. Na esquina, alguém a aplicar golpes de vandalismo, o conto do vigário ou, quando não, um sem-vergonha a prometer a sorte grande. Nos cruzamentos, são carros a avançar no sinal vermelho. As lucrativas entidades bancárias pregam a utopia do atendimento e juros mais baixos, que não condizem com os fabulosos lucros no fim do ano. E a loucura não para por aí. O município cobra o estacionamento, mas não dá garantia alguma de segurança.

Lamentavelmente, é uma realidade que vai minando aos poucos a paciência de todos, passando pelo equilíbrio emocional, pela fadiga, mau humor, em suma, pela infelicidade. Diante disso, só há uma saída: torcer pelo nosso ideal. Se possível, com bom tempo, escolher o nosso destino e encarar a estrada. Sozinho ou em grupo, não importa.

Aí sentimos a liberdade de voar. Voar não no sentido denotativo de ultrapassar, de forma irresponsável, os limites da velocidade, mas no sentido de nos vermos livres das algemas do relógio.

Em cima de um motociclo encontra-se a paz e o equilíbrio mental de que precisamos, e a paisagem do dia a dia é substituída por uma paisagem verde natural das matas, rios e pastos. A atmosfera cinzenta de dióxido de carbono é substituída por ar puro. São os ventos montanheses que suavemente enfrentam o nosso corpo numa resistência infantil. Poder-se-ia dizer que é uma saborosa comunhão: moto, estrada, verde e ventos. Lógico que esse quarteto homogéneo perde a sua consistência quando não associado a um ingrediente chamado responsabilidade.

É preciso entender que somos humanos e, como humanos, somos limitados; que a moto é uma máquina e, como tal, pode apresentar problemas mecânicos a qualquer velocidade; que as nossas estradas apresentam erros de engenharia e são mal conservadas. Os buracos, muitas vezes, são verdadeiras sepulturas à espera dos seus cadáveres. As placas de sinalização ou estão danificadas ou encobertas pelo mato. As linhas contínuas ou descontinuas do asfalto perderam a sua cor ou não existem. Não se pode esquecer um outro perigo representado por motoristas embriagados na condução dos seus veículos, expondo as suas vidas e a de terceiros ao preço de uma dose de álcool. Assim como os motoristas que ultrapassam os limites humanos do sono, tentando cumprir horários, o que, por vezes, termina quase sempre em grandes tragédias.

Mas, superadas essas adversidades, é o prazer em companhia de muita gente amiga e de novas amizades que vão se constituindo ao longo dos anos. Amizades que se solidificam, amizades verdadeiras, pautadas na sinceridade, na transparência e na ajuda mútua. São amizades que nascem primeiramente pelo amor à moto e à forma de estar na vida, sem qualquer interferência de cor, clero, posição social, preferência futebolística ou discriminação de marca ou cilindrada. Ao contrário do que acontece quando envolve a opção desportiva, onde os seus fãs proferem insultos, promovem agressões, alimentam rivalidades e até matam defendendo o estandarte dos seus clubes, no motociclismo ocorre o inverso: não importa o brasão de cada um, todos são considerados irmãos, uma grande família com propósitos comuns, e a única bandeira defendida é a da paz pela paz.

Não há nada mais gratificante do que chegar a um local e ser bem recebido, mesmo que a indumentária cause um certo susto aos mais conservadores e, principalmente, aos religiosos. Sente-se o olhar de admiração e o quanto somos queridos, especialmente quando o local já recebeu motociclistas em outras épocas, denotando que o evento e as pessoas ficaram com boa recordação. É gratificante quando um pai ou uma mãe se aproxima do motociclista e pede uma foto junto ao seu filho, ou simplesmente pede para tirar uma foto com a sua moto. É gratificante a hospitalidade oferecida pelos moradores quando algum motociclista se vê em dificuldades, a ponto de oferecerem as suas casas para os abrigar. Vê-se aí, claramente, a confiança depositada nos motociclistas.

Tudo isso porque ser motociclista não é simplesmente subir a uma moto e seguir o comboio. O que se leva em conta é o espírito da opção. A filosofia precisa ser internalizada de forma consciente e não se pode deixar à beira da estrada o respeito pelos limites da máquina e do ser humano, o respeito pelas leis e pelos agentes de trânsito, o respeito pela natureza e por aqueles que dividem a estrada connosco, e nunca abrir mão, jamais, dos itens de segurança do condutor e do passageiro. É importante também tentar, pouco a pouco, que alguns raros motociclistas, que não têm compromisso com nada e com ninguém, que só pensam neles, não respeitam as leis do trânsito e não têm amor à própria vida, independentemente da cilindrada da sua moto, a que eu chamo de “motoqueiros”, modifiquem a sua maneira de estar. É rejuvenescer os ideais das décadas de 60/70, que foram fantásticas para o movimento motociclista. O conceito de liberdade e resistência ao sistema.

A meu ver, os acrobatas que são motociclistas, e dignos desse nome, deviam separar as acrobacias (espetáculo bastante apreciado por muitos) das constantes destruições de pneus com a moto travada com o travão da frente, levando-os ao arrebentamento, onde por vezes optam também por destruir a moto. Há acrobatas que fazem espetáculo com carros. É ridículo, pois o público, nesse momento, está na condição de motociclista. Para ver espetáculos com carros, vai-se a locais adequados.

O motociclista não gosta de ver motos destruídas, exibições sem arte ou exemplos negativos para as gerações mais novas, que, através delas, outros que só pensam em organizar esquemas, sejam eventos ou até associações, com o objetivo do lucro.

Nestes tempos em que criar moto clubes e similares virou moda, cabem algumas reflexões:

Primeiramente, não se pode criticar isso de forma veemente, pois a grande maioria das organizações atuais surgiu normalmente pela empolgação de algum líder ao adquirir a sua tão cobiçada máquina.

O problema é que, sem organização, nada funciona. Normas, por sua vez, não são algo muito aceites no meio motociclístico, que busca exatamente a liberdade. Na quase totalidade destes grupos, imperam várias tendências de estilos, formas de pensar, entre outras, ficando assim descaracterizados de qualquer rumo ou ideologia, e até prejudicando, por vezes, a imagem do motociclista. Por sua vez, o motociclismo de forma solitária é algo um tanto sem graça.

O que fazer? Uma alternativa que tentaria ter uma “bagunça organizada” (se é que isso é possível!) é criar ideologias com o mínimo de regras, mas que possibilitem ao motociclista portar a sua bandeira e não ser apenas mais um na multidão.

Os motociclistas são uma família maravilhosa, são todos irmãos. Têm como grande função neste mundo, acho eu, irmanar os povos e desarmar aquela noção de fronteira. Fronteiras são limites meramente geográficos e políticos, sem nenhuma significação. Os motociclistas provam isso todos os dias antes dos outros. Os outros provavelmente ainda vão chegar lá. Tanto faz conversar com gente do Pólo Norte ou do Pólo Sul. Todos nós somos o mesmo tipo de gente; só muda um pouco a educação e a roupa.

Paz pela Paz

António Casteleiro