Amor – Constuir e Destruir !
A união que desejamos ver concretizada no mundo não deve ser confundida com a intromissão nas realidades alheias em nome da unidade que almejamos. Muitas vezes, essa confusão leva a que, no âmbito das relações afetivas, haja uma tendência à apropriação do outro, levando à crença de que isso é amor. Em nome desse amor, exigem-se comportamentos específicos, baseados em expectativas criadas, que desejamos ver realizadas para que o nosso vazio se preencha à custa do outro. Espera-se que este se comporte de acordo com o que consideramos ser as condições necessárias para que o relacionamento se mantenha.
Surge, então, o apego e a dependência, que não libertam nem aquele que julga amar nem o sujeito a quem esse sentimento se dirige. A expressão “Não posso viver sem ti”, que inspira todo o tipo de romances e novelas, revela o quanto transferimos para o outro a responsabilidade pelo preenchimento das nossas vidas e pela nossa felicidade. É, de facto, um desafio aceitar que a responsabilidade de sermos de uma ou outra maneira, de vivermos bem ou mal connosco próprios, recai fundamentalmente sobre nós.
Atribuir aos que nos rodeiam a causa das nossas angústias e problemas aliena-nos e evita o confronto com as dificuldades que precisamos de superar, que muitas vezes julgamos resultar do comportamento de alguém em relação a nós. A interação que se estabelece entre as pessoas pode facilitar ou dificultar a resolução dos problemas de cada um. Os outros, de facto, contribuem para uma consecução mais fácil ou difícil da felicidade pessoal que procuramos. No entanto, apenas nós podemos gerir essas diferentes circunstâncias para que a construção interior se realize. As experiências com os outros são, assim, instrumentos para a realização desse trabalho pessoal e solitário.
Nas famílias de modelo tradicional, a noção do grupo como uma realidade que se impunha ao indivíduo, em nome da união familiar, impedia que cada um se destacasse de forma única, especialmente se isso contradissesse as expectativas do conjunto. As frustrações e a incapacidade de auto-realização tornaram-se a norma. Todos eram obrigados a comportar-se não só de acordo com os ditames familiares, mas também em consonância com regras rígidas de âmbito social e comunitário.
As sociedades modernas do mundo ocidental, ao introduzirem a noção de individualismo sociológico, inverteram essa tendência arcaica, permitindo, num espírito de liberdade, a expressão de cada pessoa dentro dos parâmetros legais e institucionais que garantem o exercício dessa liberdade a todos.
Assim, a união ou amor que se procura realizar no mundo, e que constitui o cerne da realização humana, não deve ser confundida com a diluição de personalidades em nome da coesão do grupo ou da comunidade. Pelo contrário, deve ser uma manifestação harmoniosa, respeitando cada indivíduo, onde as diversas realidades, ao evidenciar as suas peculiaridades, constroem uma realidade maior e mais rica.
É, portanto, essencial que, num clima de liberdade — dentro de regras coletivas que protejam os direitos de todos os cidadãos —, se permita o crescimento individual, de modo que o mundo se torne um espaço que revela as contribuições únicas de cada ser humano.
Este é o sentido que devemos buscar nos relacionamentos que estabelecemos uns com os outros, nomeadamente no casamento, que deve, antes de tudo, procurar a autonomia de cada um dos parceiros. Assim, cada um poderá descobrir-se como um ser único e realizar-se individualmente. O amor, entendido como o respeito por essa liberdade pessoal e o desejo e a ação em prol do bem-estar e crescimento do outro, facilitará essa busca de autonomia e construção pessoal.
Podemos compreender melhor esta perspectiva se refletirmos sobre o fenómeno de destruição que se segue a um embate violento entre dois corpos ou realidades materiais. Não se trata aqui de união, mas antes de uma alteração violenta do estado em que se encontrava uma entidade física, pela intromissão de algo que não permitiu a livre circulação e existência dessa mesma entidade.
De igual forma, se, em nome da coesão relacional, procedermos de maneira semelhante nas interações com os outros, estaremos a impedir que a união desejada se estabeleça, a qual decorre sempre da inter-relação de agentes livres e únicos em termos de expressão própria.
Assim, o amor deve ser visto como a energia construtiva que estabelece a harmonia entre as partes, permitindo que cada um se expresse plenamente, contribuindo para um relacionamento saudável e enriquecedor. É na aceitação das diferenças que encontramos a verdadeira coesão, onde cada um pode brilhar na sua singularidade, contribuindo para um relacionamento saudável e enriquecedor. É na aceitação das diferenças que encontramos a verdadeira coesão, onde cada um pode brilhar na sua singularidade, contribuindo para um todo mais rico e diversificado.
O amor, portanto, não deve ser visto como uma possessão, mas como uma parceria onde ambos os indivíduos se apoiam mutuamente na sua jornada de autodescoberta e crescimento. Quando cada um se sente livre para ser quem é, a relação torna-se um espaço seguro para a expressão autêntica, onde as vulnerabilidades podem ser partilhadas sem medo de julgamento.
Além disso, é fundamental que cada um de nós se comprometa com o seu próprio desenvolvimento pessoal. O autoconhecimento e a autoaceitação são passos essenciais para que possamos amar de forma genuína. Quando nos conhecemos e aceitamos, tornamo-nos mais capazes de oferecer amor ao outro, sem a necessidade de dependência ou possessividade.
A construção de um amor saudável requer comunicação aberta e honesta, onde as necessidades e os desejos de cada um são expressos e respeitados. É um processo contínuo que exige esforço, paciência e a disposição para aprender e crescer juntos. Ao abraçarmos essa visão do amor, não apenas enriquecemos as nossas relações, mas também contribuímos para um mundo mais harmonioso, onde cada indivíduo é valorizado e respeitado em sua singularidade.
Em última análise, o amor é uma força poderosa, capaz de construir e transformar. No entanto, é crucial que o entendamos como um processo que deve ser cultivado com cuidado e atenção. O desafio está em cultivar um amor que edifica, que respeita e que promove a liberdade de ser, tanto para nós mesmos quanto para aqueles que amamos.
Assim, ao refletirmos sobre o amor e as relações que estabelecemos, devemos ter em mente que a verdadeira união se constrói a partir do respeito mútuo e da valorização da individualidade. O amor deve ser um espaço seguro onde cada um pode ser autêntico, livre de pressões e expectativas que possam levar à destruição da essência do outro.
Portanto, ao buscarmos o amor em nossas vidas, que possamos sempre lembrar que ele é um convite à construção de um mundo mais harmonioso, onde a liberdade e a autonomia de cada ser humano são celebradas. É um caminho que, embora repleto de desafios, nos oferece a oportunidade de crescer, aprender e, acima de tudo, amar de forma plena e verdadeira.
(António Casteleiro)
” Aceito os ignorantes ! Não aceito os que ignoram a própria ignorância. ” (António Casteleiro)